Capitulo 5 - Não é ao mundo que ajudamos, e sim a nós mesmos
Antes de considerar com maior extensão a forma pela qual a devoção nos auxilia em nosso progresso espiritual, permiti-me que abra um breve parêntese para outro aspecto do que na Índia entendemos por karma. Todas as religiões constam de três partes: filosofia, mitologia e ritual. A filosofia é, primeiramente, a essência da religião; a mitologia a explica mediante as vidas mais ou menos legendárias dos grandes homens, as histórias e os relatos de acontecimentos surpreendentes, etc., e o ritual dá à esta filosofia uma forma ainda mais concreta, com o fim de que todos a possam interpretar.
O ritual é karma obrigatório em toda a religião, pois muitas pessoas não podem compreender as coisas espirituais abstratas, senão depois de terem alcançado o suficiente desenvolvimento espiritual. É fácil pensar que podemos compreender tudo, porém quando chega o momento de pormos em prática nosso conhecimento, vemos que é muito difícil entendermos as idéias abstratas. Portanto, os símbolos constituem um poderoso auxiliar, que não podemos abandonar. Desde tempos imemoriais, os símbolos foram usados por todas as religiões. Em certo sentido, não pensamos a não ser por meio de símbolos; acaso não são as palavras símbolos do pensamento? E ainda podemos dizer que o próprio universo é um símbolo que oculta Deus. Esta simbologia não é mera concepção da mente humana. A simbologia religiosa é resultante de um crescimento natural, e se assim não fosse, como é que determinados símbolos estão indissoluvelmente associados a determinadas idéias? Certos símbolos são universalmente conhecidos. Muitos de vós pensam que a cruz nasceu com o Cristianismo. Porém é um fato comprovado que antes do Cristianismo existir, antes de Moisés ter nascido ou que Os Vedas fossem conhecidos, antes de se registrar qualquer conhecimento, já existia este símbolo.
Sabe-se que a cruz esteve entre os astecas e fenícios, e que todas as raças a conheceram. Além disto, o símbolo do Salvador crucificado parece haver sido conhecido em todas as nações. O círculo é símbolo muito importante em todo o mundo. Por outro lado, existe o símbolo mais universal de todos, que é a cruz esvástica (a cruz esvástica é o símbolo da divina energia criadora em perpétua atividade, e representa-a girando vertiginosa e poderosamente da esquerda para a direita, como o denotam seus braços recurvados para a esquerda; não deve ser confundida com a cruz gamada (suástica), símbolo das forças negras ou destruidoras: seus braços recurvados para a direita (ao contrário dos da esvástica), figuram um movimento inverso ao da evolução ou oposto à Vontade Divina).
Durante certo tempo acreditou-se que fosse criação dos budistas, porém descobriu-se que já era conhecido na Babilônia e no Egito. O que demonstra isso é que estes símbolos não podem ser meros sinais convencionais; deve existir alguma associação natural entre eles e a mente humana. A linguagem não é convencional; as idéias se correspondem com as palavras de maneira natural. Os símbolos que representam idéias podem ser sons e cores. Os surdos-mudos devem pensar mediante símbolos que não são sons. Cada pensamento cria uma forma específica; isto se chama, na filosofia sânscrita, nainarupa, nome e forma. É tão impossível criar convencionalmente um sistema de símbolos como criar uma linguagem.
Nos símbolos ritualistas conservamos uma expressão do pensamento religioso da humanidade. É fácil dizer que são inúteis os rituais, templos e outros elementos de adorno; até as crianças podem fazer esta afirmação. Mas é fácil comprovar que aqueles que se ligam aos templos são algo diferente daqueles que se abstêm de fazê-lo. Por conseguinte, associar-se a um determinado templo, a rituais e outras formas concretas das religiões, tende a despertar na mente de seus devotos as idéias simbolizadas por essas coisas concretas; e não se ignora que todos os rituais são simbólicos. O estudo e a prática destas coisas fazem parte de Karma-Yoga.
No entanto, esta ciência da ação possui muitos outros aspectos. Um deles é conhecer a relação entre o pensamento e a palavra, e quanto pode ser adquirido mediante o poder desta. Em todas as religiões é conhecido o seu poder, e até mesmo alguns afirmam que a criação teve origem na palavra. O aspecto externo do pensamento de Deus é a palavra; e como Deus pensou e quis antes de criar, a criação é resultante da palavra. Na violência e precipitação da vida materialista, nossos nervos endureceram e perderam a sensibilidade. Quanto mais velhos somos e mais experiências adquirimos, mais insensíveis nos tornamos, e terminamos por não fazer caso das coisas que nos rodeiam.
A natureza humana primeiramente se impõe algumas vezes e nos leva a inquirir e considerar alguma destas ocorrências; esta reflexão é o primeiro passo para a luz. Além do alto valor filosófico e religioso da Palavra, vemos que os símbolos sonoros desempenham papel importante no drama da vida humana. Eu vos falo, porém, não vos toco; as vibrações do ar causadas por minhas palavras vão aos vossos ouvidos, tocam vossos nervos e produzem efeitos em vossa mente. Não podeis impedir isto. Pode haver algo mais assombroso? Um homem chama outro de néscio; este se põe de pé, cerra os punhos e lhe dá uma bofetada. Vede o poder da palavra. Uma mulher chora desconsolada; outra passa e lhe dirige palavras de consolo; o desesperado aspecto da aflita desaparece e começa a sorrir. Pensai no poder destas palavras.
Age com potente energia, tanto na mais elevada filosofia como na vida prática. Noite e dia manipulamos inconscientemente esta força, sem tratar de indagar sua essência. Conhecer a natureza desta força e utilizá-la corretamente também é uma parte de Karma-Yoga.
Nosso dever para com os outros baseia-se em ajudá-los, fazer bem ao mundo. Por que devemos fazer bem ao mundo? Aparentemente para ajudarmos a nós próprios. Tratar de ajudar o mundo deveria ser nossa mais elevada aspiração; porém, se pensarmos um pouco, veremos que o mundo não precisa de nosso auxílio. Este mundo não foi criado para que vós e eu o ajudássemos. Uma vez li um sermão que dizia: "O mundo é muito bom porque nos oferece a oportunidade de ajudar os demais". A primeira vista este sentimento é muito belo; porém, não é uma blasfêmia dizer que o mundo precisa de nosso auxílio? Não podemos negar que há muita miséria nele; socorrer o próximo, portanto, é o que de melhor podemos fazer, ainda mesmo que saibamos que a única coisa que nisso fazemos é auxiliarmos a nós mesmos.
Quando eu era criança, tinha uns ratos brancos e os guardava em uma caixa munida de umas rodas feitas de modo que, quando os ratos andavam nela, as rodas giravam incessantemente e os ratos ficavam no mesmo lugar. É o que acontece ao mundo com o nosso auxílio. O único auxílio positivo consiste em nos obrigar a uma ginástica moral. O mundo não é nem bom nem mau; cada homem constrói um mundo para si mesmo. Se um cego principia a pensar no mundo, o suporá frágil ou duro, frio ou quente. Constituímos uma massa de felicidade e infortúnio; podemos observar isto centenas de vezes.
Geralmente os jovens são otimistas e os velhos, pessimistas. O jovem tem a vida ante si, e o velho se queixa porque envelheceu mais um dia; centenas de desejos que não puderam ser satisfeitos fervem em seus corações. No entanto, ambos estão em condições idênticas. A vida é boa ou é má, segundo as atitudes mentais com que a observemos; por si mesma, não é nada. O fogo, por si mesmo, não é bom nem mau. Quando nos dá calor, dizemos: "Que bom fogo!" Quando nos queima o dedo, o maldizemos. Segundo o uso que dele façamos, produz em nós uma sensação agradável ou desagradável. O mundo é perfeito. Por perfeição entendemos aquilo que está admiravelmente adaptado aos seus fins. Podemos estar seguros de que caminhará completamente bem sem nossa ajuda, e que não tem necessidade de que percamos a cabeça por sua causa.
Todavia, precisamos praticar o bem; o desejo de fazer o bem é o que de mais elevado podemos aspirar, desde que aceitemos o princípio de que é um grande privilégio ajudar os outros. Não vos coloqueis num alto pedestal, com uma moeda na mão, enquanto dizeis: "Tomai, pobre homem". Agradecei mais do que o pobre, pois deste modo tivestes a oportunidade de ajudar a vós mesmos, ajudando o pobre. O beneficiado não é quem recebe, e sim, aquele que dá. Agradecei àqueles que vos deram a oportunidade de ser benevolente e misericordioso, pois só assim chegareis neste mundo a ser puro e perfeito. Todas as boas ações nos levam à pureza e perfeição. Que de melhor podemos fazer? Construir um hospital, abrir estradas, erguer asilos de caridade, organizar uma festa de beneficência e reunir dois ou três milhões de dólares, edificar um hospital com um milhão, com o segundo dar bailes e beber champanha e com o terceiro deixar que os administradores roubem a metade, e o resto, finalmente que chegue aos pobres. Que representa isto? Um golpe de vento destrói tudo em cinco minutos.
Que devemos então fazer? Uma erupção vulcânica pode arrasar os nossos hospitais e nossas estradas. Abandonemos esta conversa inútil de querer fazer bem ao mundo; ele não precisa do vosso auxílio nem do meu; no entanto, devemos fazer o bem constantemente, porque isto constitui uma bênção para nós. Esta é a única maneira de chegarmos a ser perfeitos. Nenhum dos mendigos que temos auxiliado deve um só centavo a nós; ao contrário, somos nós que lhes devemos o favor de nos ter permitido ajudá-los. É erro pensar que nós temos o poder de fazer bem ao mundo, ou acreditar que auxiliamos tais ou tais pessoas. É um pensamento falso, e os pensamentos falsos produzem miséria.
Imaginemos um homem que ajudou seu semelhante e espera recompensa, e como este não lhe foi grato, ele se sente infeliz. Por que devemos esperar a recompensa daquilo que fazemos? Agradecei ao homem que permitiu ser ajudado, considerando-o um Deus. Não é um grande privilégio sermos permitido adorar Deus ajudando nossos semelhantes? Se estivéssemos verdadeiramente desligados, nos livraríamos desta expectativa e poderíamos praticar no mundo muito trabalho útil. Nunca traz infelicidade nem miséria, a ação realizada sem se esperar recompensa. O mundo continuará com suas tristezas e alegrias por toda a eternidade.
Havia um pobre homem que necessitava de certa importância em dinheiro e, não se sabe como, tinha ouvido dizer que se ele pudesse se utilizar dos serviços de um gênio, ele poderia obrigá-lo a trazer-lhe dinheiro e tudo quanto desejasse. Por isto estava ansioso por encontrar algum, e saiu em busca de alguém que lhe facilitasse os meios de conseguir. Finalmente, topando com um sábio que possuía poderes, pediu-lhe auxílio. O sábio perguntou-lhe porque desejava um gênio, "É para trabalhar para mim; ensina-me como posso obtê-lo, senhor, porque necessito muito", replicou o homem. O sábio disse: "Não vos inquieteis; ide à vossa casa".
No dia seguinte o nosso homem foi novamente ver o sábio e tornou a suplicar-lhe: "Dai-me um gênio; eu preciso de um gênio, senhor; ajudai-me". Por fim o sábio se cansou e lhe disse: "Tomai este talismã, repeti tal palavra mágica e vos aparecerá um gênio que fará tudo que lhe determinardes. Mas tende cuidado; são seres terríveis e devem estar constantemente ocupados; se deixardes de lhe dar trabalho, ele vos tirará a vida". O homem replicou: "Isto é fácil, dar-lhe-ei trabalho para toda a minha vida". Foi ao bosque e depois de repetir várias vezes a palavra mágica, um enorme gênio se lhe apresentou e disse: "Eu sou o gênio, e fui
conquistado por vossa magia; deveis ter-me ocupado constantemente, senão vos matarei". O homem lhe ordenou: "Constrói-me um palácio". "Já está construído", lhe disse. "Traz-me dinheiro", disse logo. "Aqui está o dinheiro", respondeu-lhe o gênio. "Abre este monte e edifica uma cidade neste lugar". "Já está feita” , replicou; "que quereis mais?" Então o homem começou a temer, por não ter nada mais para mandar fazer, pois o gênio fazia tudo num momento. O gênio não esperou: "Ou me dais serviço ou vos mato", lhe disse.
O pobre homem estava aterrorizado; não havia ocupação para dar-lhe; todo assustado, correu à casa do sábio e lhe suplicou: "Oh! Senhor, salvai-me a vida". E como este lhe perguntasse o que acontecia, lhe respondeu: "Não tenho nada mais para mandar o gênio fazer; tudo o que lhe ordeno, faz num momento, e ameaça matar-me se eu não lhe der mais trabalho". Naquela hora chegou o gênio: "Vou matar-vos”, exclamou, e se dispôs a fazê-lo. O homem começou a tremer e a rogar ao sábio que lhe salvasse a vida. Este lhe disse: "Eu vou encontrar-vos uma saída. Observai aquele cão que tem a cauda enrolada. Tirai rapidamente vossa espada, cortai-a e mandai o gênio endireitá-la". O homem assim fez. O gênio pegou a cauda e com muito jeito conseguiu endireitá-la, porém, sempre que a largava, ela se enrolava de novo. Durante dias inteiros endireitava a cauda e esta tornava a enrolar-se, até que por fim exclamou:
"Jamais me vi em tal aperto; sou um velho e veterano gênio, porém nunca me vi em tão grande dificuldade. Vou propor-vos um trato: permite que me retire e vos deixarei tudo o que já vos dei, comprometendo-me a não vos fazer mal algum". O homem ficou contente e o aceitou alegremente.
Este mundo se parece com a cauda enroscada do cão: as pessoas têm lutado para endireitá-la durante centenas de anos, porém quando a soltam, ela se enrola de novo. Como poderia ser de outro modo? Todos têm que aprender primeiro a agir sem se ligar à ação; então já não será um fanático. Quando compreendermos que este mundo é como a cauda enrolada do cão, que nunca se endireitará, então não seremos fanáticos.
Se não houvesse fanatismo no mundo, este progrediria mais rapidamente. É um erro crer que o fanatismo pode contribuir de algum modo para o progresso do gênero humano; ao contrário, é uma peçonha que, criando ódios e cóleras, é a causa das pessoas lutarem entre si, tornando-se insensíveis à compaixão.
Pensamos que tudo quanto fazemos ou possuímos é o melhor do mundo, e que o que não fazemos nem possuímos, não tem valor. Assim, recordai-vos do exemplo da cauda enrolada, para evitar vos tornardes fanáticos. Não tendes necessidade de vos atormentar nem de perder o sono por causa do mundo; seguirá seu caminho sem vós. Somente quando tiverdes evitado o fanatismo, agireis bem. É o homem mentalmente equilibrado, de juízo sereno e capaz de experimentar simpatia e amor, que faz boa obra e se favorece a si mesmo. O fanático é néscio e não sente; jamais pode modificar o inundo nem se tornar puro e perfeito.
Em síntese, os principais pontos deste capítulo são: Primeiro, recordar que somos devedores do mundo e que este nada nos deve. É um grande privilégio para nós sermos permitido fazer algo pelo mundo. Ao ajudá-lo, em realidade nos ajudamos a nós mesmos. Segundo, que há um Deus neste universo. Não é certo que este universo flutue sem destino e tenha necessidade do vosso auxílio ou do meu. Deus está sempre presente nele. É imortal, eternamente ativo e infinitamente vigilante. Quando todo universo dorme, Ele permanece velando; age incessantemente; as mudanças e manifestações do mundo são obra Sua. Terceiro, não devemos odiar ninguém.
Este mundo continuará sempre sendo uma mistura de bem e de mal.
Nosso dever é simpatizar com os débeis e amar, inclusive, os malfeitores. O mundo é um grande ginásio moral, onde devemos exercitar-nos para sermos, cada dia, mais fortes espiritualmente. Quarto, não devemos ser fanáticos, porque o fanatismo é oposto ao amor. Ouvireis continuamente que os fanáticos dizem: "Eu não odeio o pecador e sim o pecado"; porém estou disposto a ir a qualquer parte, por longe que ele seja, para encontrar o homem realmente capaz de distinguir entre o pecado e pecador. É muito fácil dizer. Se pudéssemos distinguir bem entre qualidade e substância, poderíamos chegar a ser perfeitos. Não é fácil fazê-lo. E quanto mais tranqüilos formos e menos alterados estiverem os nossos nervos, mais amaremos e melhor agiremos.
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Editora: Pensamento
Autor: SWAMI VIVEKANANDA
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Postado por Zulma Peixinho
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